A epidemia será uma das experiências mais traumáticas da história moderna. Mas, com
sorte, poderemos sair dela mais preparados para os desafios ambientais.
O desenrolar da pandemia de coronavírus ainda é um mistério. Mas podemos afirmar
que esse episódio deixará marcas profundas na humanidade. O período de angústia,
sofrimento e perdas deve gerar um grande trauma em escala global. Toda a geração
que passou por isso ficará marcada e sairemos dessa com novas visões de mundo.
É possível que a crise dure muito. Para administrar a velocidade de contágio e tentar
evitar o colapso dos sistemas de saúde, autoridades de vários países manterão a
população em estado de distanciamento social ou quarentena em sucessivas ondas de
maior e menor restrição. Até a proporção de pessoas imunes reduzir o risco da doença.
Ou até a chegada de uma vacina, que pode demorar anos para ser inventada e
produzida em larga escala. Especialistas em epidemiologia começam a calcular que o
período de exceção que vivemos pode se estender até o fim de 2022.
É um período longo de home office, restrição de atividades com multidão, redução de
viagens aéreas e outras grandes alterações em nossos meios de produção, convívio
familiar e entretenimento. Vai transformar radicalmente as economias, os serviços, as
tecnologias, os hábitos, o nosso paradigma de sociedade. Naturalmente, qualquer
exercício de futurologia agora é arriscado. Mas já é possível vislumbrar algumas
grandes tendências do mundo que virá por aí. Muitas delas coincidem com a visão de
uma humanidade que usa de forma mais sustentável os recursos naturais do planeta.
Talvez a crise do coronavírus, que deve durar alguns anos, acelere a transição da
sociedade para formas de viver e produzir que nos ajudem a lidar com outra crise global
– a das mudanças climáticas – que certamente vai durar pelos próximos séculos.
A seguir, uma tentativa de traçar oito megatendências ecológicas para o mundo póscoronavírus:
Maior credibilidade da ciência, principalmente em sua capacidade de antecipar
perigos. Menos espaço para negacionistas
Isso já está acontecendo. Os cientistas alertaram que uma epidemia dessas poderia
ocorrer. Também anteciparam algumas das consequências de deixar essa epidemia
correr solta. Os que tentaram negar as evidências e estimativas dos cientistas foram
obrigados a voltar atrás, rapidamente derrotados pelos fatos. Os cientistas vêm alertando para outros riscos, como na área ambiental. É provável que a lição trágica de
tentar negar o conhecimento e os alertas científicos seja aprendida por muitos líderes e
por cidadãos comuns.
Seria um grande ganho para todos, porque poderíamos parar de gastar energia
tentando convencer um grande número de desinformados que o consenso científico não
vem por acaso e dedicar tempo e recursos preciosos para resolver os problemas ou
reduzir seus danos. “Nós vimos as terríveis consequências daqueles que rejeitaram os
avisos da pandemia. Não podemos mais arcar com as consequências da negação das
mudanças climáticas”, afirmou por tuíte o ex-presidente americano Barack Obama no
dia 31 de março.
Valorização das coisas simples versus consumismo
Estamos passando por momentos de grande angústia e incerteza. Estamos lutando por
nossas vidas e pela vida das pessoas que amamos. Estamos sacrificando nosso
conforto (ficando em casa) e boa parte de nossas riquezas (optando por medidas com
impacto econômico) para isso. Estamos todos fazendo a escolha de valorizar a vida
antes de qualquer opção financeira. Mesmo assim, haverá sofrimento. Depois disso
viveremos dias difíceis e longos de empobrecimento generalizado, dificuldades
materiais.
Mas será possível saber que superamos um desafio gigante. Essa experiência forte já
está levando algumas pessoas a valorizar as relações humanas, a família, pequenos
prazeres, objetos do dia a dia, aquilo que temos em casa. Para suportar a angústia e a
incerteza, as pessoas estão buscando engrandecimento espiritual, pensando mais em
aproveitar o presente. Haverá um resgate de estilos de vida simples, mais focados nas
relações humanas, na saúde e na felicidade, e menos na acumulação de bens tidos
como supérfluos.
A expansão das atividades humanas que dispensam o deslocamento físico
Sim. Quando o longo período de distanciamento social passar, voltaremos a nos
encontrar, a viajar, a participar de eventos com multidões. Mas a conquista dos meios
de comunicação remotos veio para ficar. Durante os longos meses de contenção da
epidemia, desenvolveremos formas eficazes de trabalhar, fazer compras, falar com os
amigos, tudo à distância. Descobriremos que muitas viagens de carro e de avião são
desnecessárias mesmo. Empresas, negócios e trabalhadores vão se ajustar para
trabalhar em casa.
Durante a retomada, com a economia retraída, será mais difícil encontrar posições de
trabalho estáveis, e mais gente permanecerá em casa, com tarefas esporádicas
remuneradas. Isso tudo trará um ganho de redução de trânsito. Queimaremos menos
combustível à toa, perderemos menos tempo no congestionamento, deixaremos o ar
das cidades mais limpo.
Aumento da solidariedade
A epidemia ameaça a todos. Controlar a velocidade de contágio não depende só de
uma pessoa ou uma família. É um esforço coletivo. Toda pessoa que respeita o espaço
do outro na fila do supermercado está ajudando. Quem deixa de sair de casa ou toma
cuidado com a distância do outro na rua. Estamos vendo manifestações gerais de
solidariedade com doações materiais, com esforços conjuntos de empresas para
desenvolver material de higiene ou equipamentos médicos. Estamos vendo vizinhos se organizado para usar as áreas livres do prédio ou para fazer compras para quem está
preso em casa.
É comprovado que hábitos e práticas mantidos com regularidade por um tempo
sustentado, reforçadas por incentivos positivos como elogios e sensação de segurança,
tendem a se firmar. Isso significa que a sociedade como um todo está adquirindo mais
solidariedade. Quando a crise específica do Covid-19 passar, essa confiança recíproca
adquirida – ou nosso capital social – será mantida.
Essa capacidade conjunta naturalmente será aplicada para resolver outras questões
que afetam a todos, como muitos dos desafios ecológicos. Isso será importante para
lidar com os problemas ambientais que envolvem o uso equilibrado de recursos
compartilhados, como rios, oceanos, florestas ou mesmo a atmosfera da Terra, no caso
das mudanças climáticas.
Compreensão de que o mundo está conectado
Os países bem que tentaram fechar suas fronteiras para reduzir a velocidade do
contágio. Mas é uma medida paliativa. Só será possível eliminar o risco do Covid-19
quando todos os países conseguirem exterminar o vírus. Outras doenças também
dependem da colaboração internacional para serem contidas e não se expandirem
numa pandemia como esta. As informações científicas e as experiências de estratégias
para conter a epidemia também circulam entre os países. Esse é um problema
claramente global. As grandes questões ecológicas da atualidade também têm essa
característica.
As emissões dos SUV com um passageiro nos Estados Unidos e do desmatamento na
Amazônia brasileira estão alterando o clima do planeta inteiro, provocando elevação
desastrosa do nível do mar em Bangladesh e agravando os incêndios florestais na
Austrália. Ainda estamos no início da crise da pandemia. Quando ela tiver passado, é
possível que esteja mais claro que a segurança de cada país depende, em boa parte,
na estabilidade do resto do planeta.
Crítica à produção industrial de animais, que dá origem a novas doenças
Ninguém está falando muito disso agora. Mas muitos dos processos de produção
industrial de animais criam vulnerabilidades para o surgimento de doenças
potencialmente catastróficas. O Covid-19 provavelmente veio de práticas de armazenar
animais selvagens presos em jaulas sem condições de higiene, para consumo humano
na China.
Havia muitos alertas científicos de que o consumo de animais silvestres com aquela
falta de cuidados poderia dar origem a um patógeno desses. Mas não havia vontade
política para agir. Agora, a prática foi abolida pelo governo chinês. Mas ainda
precisamos lidar com as fábricas de proteína animal.
Os sistemas industriais de produção animal são fontes potenciais permanentes de
novos vírus capazes de gerar pandemias piores do que a atual. A gripe suína H1N1 de
2009 parece ter surgido em uma operação de confinamento nos EUA. A gripe aviária
H5N1 de 1997 saiu de granjas na China. Outras gripes aviárias perigosas surgiram nos
EUA, na Índia e na China. Foram sufocadas com o sacrifício rápido de criações inteiras
de frangos antes que se espalhassem para os humanos. É um risco permanente.
As condições de criação envolvem animais com pouca variedade genética, submetidos
a condições de baixa imunidade. A revista científica American Journal of Public Health alertou, em editorial de 2007, que a produção industrial de animais poderia ser a origem
da próxima grande pandemia. Nunca foram levados a sério. Agora, diante do trauma do
Covid-19, as autoridades e, principalmente os consumidores, deverão questionar a
necessidade de medidas de precaução. Elas envolvem grandes mudanças na lógica da
produção em massa. Mas o mundo já está virando de cabeça para baixo de qualquer
forma.
Menos ar condicionado e mais janelas abertas
O sol e o ar puro estão sendo louvados como fatores de prevenção ao contágio do
Covid-19. Estamos sendo orientados a desligar o ar condicionado nas residências e
áreas comerciais, abrir as janelas e deixar o ar de fora entrar. A mesma orientação vale
para quem circula de carro. Desligue o ar e abra as janelas.
O uso excessivo de ar condicionado – com seus filtros de pólen nem sempre
impecavelmente limpos – está associado a doenças respiratórias e alérgicas. É claro
que o ar condicionado oferece conforto nos dias mais quentes. Ele será necessário para
as cidades cada vez mais quentes com as mudanças climáticas.
Mas os meses de confinamento e cuidados com o ar viciado dos ambientes fechados
provavelmente trarão a valorização de projetos arquitetônicos que aproveitam a
circulação natural de ar, renovando o ambiente com o frescor de fora. Isso será bom
não só para nossa saúde. A redução no uso do ar condicionado também diminuirá o
consumo de energia e o vazamento para a atmosfera de gases refrigeradores com alto
potencial de efeito estufa. Respiraremos melhor.
Valorização das áreas naturais
Semanas ou meses de confinamento dentro de apartamentos, olhando para a paisagem
urbana na janela. Enfrentando angústia e perdas. As pessoas já estão manifestando
desejo de maior contato com a natureza. As famílias que podem estão escolhendo
passar o período de quarentena em casas de campo ou na praia, em contato com a
natureza.
Passeios em áreas naturais ou perto de cenários como montanhas, lagos ou praias
reduzem o estresse no período de distanciamento social. Os ambientes naturais
sabidamente oferecem sensação de paz nos momentos difíceis. Observar o ciclo natural
ou movimentos simples como uma formiga subindo uma árvore ajuda a oferecer
conforto para quem perdeu uma pessoa querida.
O ar puro e a paisagem natural têm efeito reconhecido para a saúde mental, para
recompor a imunidade. Muitas cidades fecharam o acesso aos parques públicos
urbanos, privando os cidadãos desses espaços verdes. A privação irá aumentar o valor
desses metros quadrados de natureza sobreviventes nas grandes cidades.
É claro que isso não compensa o imenso sofrimento humano que estamos vivendo e
vamos viver. Também seria ingenuidade pensar que todas as lições dessa epidemia
tornarão nossas sociedades mais saudáveis. Mas a resiliência das famílias, das
comunidades e dos países reside em sua capacidade para aprender com a dor e buscar
mais sustentabilidade. Com sorte, a humanidade sairá um pouco mais sábia desse
episódio.